Jornalismo para ignorantes
O caso do empresário esquartejado
Por Sylvia Debossan Moretzsohn em
12/06/2012 na edição 698
A morte do empresário Mario Matsunaga
foi, ao que tudo indica, rapidamente esclarecida logo depois que sua mulher foi
presa e confessou a autoria do crime. Certo noticiário tenderá agora a revolver
os mistérios da alma humana ao explorar detalhes mórbidos do episódio: afinal
não é um crime qualquer, é um crime passional em que a mulher não apenas mata,
mas esquarteja o marido após aguardar o tempo suficiente para que os cortes não
provocassem tanta sangueira, enquanto sua filhinha de 1 ano dormia alheia a tudo,
e na manhã seguinte sai para se desvencilhar do corpo despedaçado distribuído
em três malas de viagem.
Há mais detalhes típicos de
folhetins: a mulher havia sido garota de programa e encontrara o futuro marido
nesses contatos via internet, era extremamente ciumenta e havia posto um
detetive atrás dele para comprovar um caso extraconjugal; a mãe está se
tratando de um câncer e não compreende o comportamento da filha.
Intimidades de família, segredos de
alcova, cenas exclusivas da traição, tudo isso garante audiência ao gosto do
voyeurismo do público e fornece farto material para os programas de sempre, com
o convite a “especialistas” também sempre dispostos a opinar sobre motivações e
mesmo sobre a maneira pela qual as “mentes assassinas”, que rendem óbvios best-sellers, costumam agir.
Mas isso é o que menos importa.
A
descoberta do arsenal
Durante a reconstituição do crime,
uma descoberta particularmente chocante foi noticiada como se fosse a coisa
mais banal do mundo: o arsenal encontrado pela polícia no apartamento do
empresário. Trinta armas, entre as quais fuzis e submetralhadoras, e caixas de
munição com cerca de 10 mil projéteis.
Não se informou quanto tempo a
polícia teve entre esse achado e a investigação que permitiria ao delegado
afirmar, categoricamente, que as armas estavam “todas legalizadas, todas
regulamentadas e todas autorizadas para uso de colecionador”. O fato mereceu
apenas registro nos jornais.
Colecionadores têm entre si esse
traço comum da obsessão por determinado objeto, conforme não apenas o gosto mas
a condição financeira: podem ser latinhas ou rótulos de cerveja, camisas de
times de futebol, soldadinhos de chumbo, selos, livros raros, obras de arte. Ou
mesmo armas, mas nesse caso imaginamos sempre – talvez ingenuamente – o
fascínio por exemplares antigos, que marcaram época, desde garruchas e
mosquetões até modelos utilizados em guerras, mas já fora de circulação. Tudo
para ser classificado e guardado com apuro em armários envidraçados, para
exibir orgulhosamente aos amigos.
Coisa de colecionador?
De repente, somos surpreendidos com a
descoberta do arsenal – parte do qual de “uso restrito das Forças Armadas”,
como noticiou a Folha
de S.Paulo na sexta-feira (8/6) – e a
justificativa do delegado. A quem aparentemente estranhou, ele respondeu: “Ele
[o empresário morto] era atirador, ele gostava. É um hobby. Se você pegar, outros colecionadores devem ter muito mais que isso”.
Que uso um colecionador de armas está
autorizado a fazer de sua coleção? Onde se pode imaginar que um atirador vá praticar
suas habilidades com uma submetralhadora? Colecionadores podem colecionar armas
de uso exclusivo das Forças Armadas? Podem colecionar também munição? Dez mil
projéteis não serão um número excessivo, em qualquer caso?
Salvo engano, a única reportagem que
se deteve minimamente sobre essa história foi a do Jornal Nacionalde sábado (9/6), ainda assim centrada no alerta para o número excessivo
de armas – quase 155 mil – legalmente nas mãos de “colecionadores, atiradores
esportivos ou caçadores”. Nenhum questionamento sobre o que faria este
empresário com tão variado material em casa.
Perguntas
que faltaram
Na edição de sexta-feira (8), a Folha de S.Paulo reproduziu reportagem do Agora informando que o empresário havia transformado um dos banheiros do
imóvel em “cofre” onde estocava o arsenal. Ao mesmo tempo, dizia que “parte das
carabinas, fuzis, submetralhadoras e outras pistolas estava espalhada por
outros cômodos do apartamento de quase 300 m² do casal”, porque o empresário
“temia um arrastão no prédio onde morava”.
Portanto, as armas seriam utilizadas
em caso de assalto. Por isso, aliás, ele e a mulher haviam feito curso de tiro,
seriam exímios atiradores.
Podemos imaginar então a cena de um
ataque ao apartamento duplex naquele belo condomínio vertical paulistano e o
casal de colecionadores se movimentando cinematograficamente de um lado para
outro, manuseando alternadamente as 30 armas e despejando seus 10 mil projéteis
contra os malfeitores, no melhor estilo dos filmes de gângster. Dois contra uma
cidade inteira?
Não caberia perguntar, afinal, o que
tanto temia o empresário? Que interesses, atividades e relações poderia ter
além de seu trabalho como diretor-executivo de uma fábrica de alimentos, aliás
negociada com uma poderosa multinacional americana justamente na semana em que
ele, já morto, era dado como desaparecido?
O Fantástico de domingo
(10/6) fez ampla reportagem centrada na mulher que confessou o crime, e tratou
também dos hábitos do casal. Ficamos sabendo que o empresário também era amante
de vinhos, tinha essa outra “coleção” e pretendia investir no negócio.
Sobre armas, apenas o registro já
conhecido, além da surpresa de uma das empregadas, entrevistada sem ser
identificada, diante da descoberta de uma pálida amostra do que havia no
apartamento, durante uma limpeza.
Contra a
ignorância
Jornalismo, por definição, é feito
para ignorantes. Não se trata, como pode parecer a princípio, de uma frase de
efeito: ignoramos os fatos que ocorrem fora de nosso círculo de relações, ainda
que este círculo tenha sido ampliado com a disseminação do acesso à tecnologia
digital. Por isso precisamos do jornalismo: para que nos dê informação
confiável.
Por isso repórteres precisam se
colocar no lugar do público ignorante e fazer as perguntas que possam
esclarecê-lo, e não dar de barato que tudo se resolve com as declarações das
fontes, sobretudo quando elas são evidentemente insuficientes para a
compreensão dos fatos.
[Sylvia Debossan Moretzsohn é
jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora dePensando contra os fatos. Jornalismo
e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]
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